O Mundo Que Desejamos

Consulta

Para os herdeiros de hoje, a consulta (shura) é um atributo vital e uma regra essencial, assim como foi para os primeiros herdeiros. De acordo com o Alcorão, ela é o sinal mais claro de uma comunidade fiel e a característica mais importante de uma congregação que deu seu coração ao Islam. A importância da consulta é mencionada no Alcorão no mesmo nível que a salat (orações prescritas) e o infaq (doação para manutenção da religião e das pessoas em nome de Deus):

... os que respondem a seu Senhor e praticam a oração e resolvem seus problemas por consultas entre si; e gastam do que lhes concedemos (Ash-Shura 42:38).

Nesse versículo, somos lembrados de que a consulta é um tipo de conduta que está no mesmo nível da oração. Entendemos importância da consulta porque a resposta e aceitação da palavra, ou convite, de Deus e suas consequências (orações, consulta e caridade) são mencionadas no mesmo mandamento divino.

Por isso, uma sociedade que não considera a consulta importante dificilmente será considerada totalmente fiel, e a comunidade que não aplica a consulta não é aceita como muçulmana em seu sentido completo e perfeito. No Islam, a consulta é um absoluto essencial que tanto governantes quanto governados devem obedecer. O governante é responsável por conduzir a consulta sobre as políticas de Estado, governo, legislação e todos os assuntos relacionados à sociedade. Os governados são responsáveis por expressar e transmitir suas opiniões e pensamentos ao governante.

É importante ressaltar que a consulta é a primeira condição para o sucesso de uma decisão sobre qualquer assunto. Todos já vimos como decisões feitas sem terem sido pensadas inteiramente, sem a consideração de opiniões e críticas de terceiros, relacionadas a indivíduos específicos ou à sociedade em geral, resultaram em fiasco, perdas e grandes decepções. A pessoa que se contentar apenas com sua própria opinião e não for receptiva e respeitosa às opiniões dos outros, mesmo que tenha uma natureza superior e intelecto extraordinário, estará mais suscetível a cometer erros e equívocos do que a pessoa comum. A pessoa mais inteligente é aquela que mais aprecia e respeita a consulta e deliberação mútua (mashwarat), e é aquela que mais se beneficia das ideias dos outros. Aqueles que estão contentes com suas próprias ideias, planos e ações, forçam ou insistem para que outros aceitem suas ideias não apenas ignoram uma dinâmica muito importante, mas enfrentam desacordo, hostilidade e ódio das pessoas a quem são associadas.

Assim como a primeira condição para se obter os melhores resultados em qualquer tarefa é a consulta mútua, apenas por meio delaé possível obter uma fonte significativa de poder que é muito superior à do indivíduo sozinho.

Antes de qualquer empreendimento, o indivíduo deveria se esforçar ao máximo para realizar as investigações, deliberações e consultas preliminares necessárias a fim de evitar reclamar do destino e culpar pessoas ligadas a quem realiza a tarefa e o trabalho com base nas causas; manter-se no plano das precauções; e para não se afundar ainda mais em comportamentos prejudiciais e consequências que poderiam levar à queda ou calamidade. Decepção e remorso são inevitáveis se o resultado e as consequências não forem bem pensados e deliberados e se as pessoas com experiência no assunto não forem consultadas antes de qualquer iniciativa. Empreendimentos e empreitadas iniciadas sem consulta anterior suficiente não vão longe e fazem com que aqueles que as iniciaram percam crédito e se tornem deprimidos, desencorajados e desapontados.

A consulta é uma das principais dinâmicas que mantém a ordem islâmica de pé como sistema. À consulta pertence a mais importante missão e obrigação na resolução de problemas referentes ao indivíduo e à comunidade, às pessoas e ao Estado, à ciência e ao conhecimento, à economia e à sociologia, a menos, claro, que haja um nass (decreto divino decisivo, verso do Alcorão ou comando do Profeta em qualquer parte do direito canônico) com significado claro sobre tais assuntos.

No Islam, o conselho consultivo do Estado é uma instituição em posição de liderança que ocorre antes das decisões executivas. Hoje, em alguns países, há uma suprema corte, mas sua função é muito limitada, sua alçada é muito restrita e ela é uma instituição limitada quando comparada à consulta islâmica.

Mesmo que o Chefe de Estado seja confirmado por Deus e nutrido pela revelação e inspiração, ele tem a obrigação de conduzir os assuntos de Estado por meio de consultas. Alguns negligenciaram esse aspecto, mas, em geral, o número de nações ou comunidades que mantiveram essa instituição, sob diferentes nomes e títulos em diferentes momentos, é significativo. Na verdade, nenhuma sociedade que tenha ignorado ou desprezado a consulta conseguiu prosperar, ao contrário, pereceu. Assim, o Mensageiro de Deus viu a salvação e progresso de sua comunidade na consulta mútua; “Aqueles que consultam nunca perdem”[i].

A consulta é explicitamente mencionada no Alcorão em dois versículos, mas há muitos outros que a indicam. O primeiro dos versículos explícitos foi descrito acima, o segundo, que não requer qualquer interpretação é:

Consulta-os [em questões de interesse público]. (Al-‘Imran 3:159)

Deve-se notar que consulta é a palavra-chave em um dos capítulos do Alcorão e o quão importante é o fato dele ser chamado Shura (A consulta), demonstrando um dos princípios básicos que caracterizam uma comunidade de verdadeiros crentes.

Naquele capítulo, a consulta é tratada como atributo louvável dos Companheiros. Esse é um lembrete que foi parafraseado em “Por que não seriam louvados aqueles [os Companheiros] cujas ações são todas baseadas em consulta?” O fato de os Companheiros terem sido exaltados particularmente por causa da consulta, entre tantos atributos, pode ser considerado um indicador muito importante de seu significado.

Assim como a consulta é enfatizada como regra importante no Alcorão, também testemunhamos que ela recebeu peso considerável nos exemplos do Profeta (Sunna) e sua importância é ressaltada repetidamente. O Mensageiro de Deus sempre consultou os outros, homens ou mulheres, jovens ou idosos, sobre assuntos em que o Decreto Divino não havia sido revelado. Apesar de estarmos muito avançados em vários campos hoje em dia, não podemos dizer que alcançamos o mesmo nível de consulta daquela época.

Consultando seus Companheiros em todos os assuntos, o Mensageiro de Deus levou as opiniões e perspectivas deles em consideração e, portanto, todas as iniciativas planejadas por ele eram apresentadas e adotadas pelo consciente coletivo. Ele usou cada sentimento, emoção e inclinação que surgiam do consciente coletivo como fundação, dessa forma, apoiou e deu força extra e resistência ao trabalho realizado. Ou seja, por unir as pessoas mental e espiritualmente no trabalho a ser feito, ele alcançou seus projetos de maneira mais robusta e sólida.

Agora podemos relatar alguns acontecimentos da vida do Profeta para ilustrar isso.

Antes e depois de os muçulmanos chegarem a Uhud, o Mensageiro de Deus aconselhou-se com seus Companheiros e os instruiu a seguirem certas estratégias durante a batalha. Entre as estratégias empregadas, sem ter recebido qualquer objeção direta ou indireta dos Companheiros estavam: postar arqueiros em certas posições na colina e a forma como estes deveriam confrontar o inimigo e tomar parte na batalha. Os arqueiros não deveriam deixar suas posições independentemente do que acontecesse, mesmo que outros soldados saíssem de formação ou corressem pelos espólios após uma vitória clara. Eles foram ordenados a manter suas posições, a obedecer ao comando dado e a não seguir os outros soldados.

Contudo, apesar de perceberem a sensatez de obedecer aos comandos, alguns dos Companheiros caíram em um erro de interpretação ou julgamento sobre quando o comando já não seria mais válido, por isso, apresentaram indiretamente uma atitude contrária, semelhante à oposição indireta que o Mensageiro de Deus encontrou no caminho para Uhud[ii]. Qualquer outra pessoa que tivesse enfrentado tais oposições consecutivas, além das perdas e danos sofridos naquele momento, certamente teria rechaçado seus opositores e as ideias destes e teria dito: “Vão embora, e que Deus os puna como merecem”. Porém, o Mensageiro de Deus não o fez. Apesar de ter sido ferido e sua face estar coberta de sangue – resultado dos ataques impiedosos dos inimigos aos quais foi exposto acidentalmente pelas ações de Companheiros e familiares próximos e de estar rodeado pelos corpos mutilados de muitos de seus Companheiros e familiares no momento em que alguns de seus amigos seafligiam, lutavam por suas vidas e fugiam para Medina para se salvarem, o Mensageiro de Deus recitou o verso “[os que] resolvem seus problemas por consultas entre si” para aqueles ao seu redor, culpados ou não, como se nada tivesse acontecido. Assim, ele se sentou e os consultou novamente sobre o próximo passo. O Mensageiro de Deus não apenas se aconselhou com eles, mas também os informou que seriam perdoados; ele havia recebido a Revelação Divina ordenando-o a orar para que eles fossem perdoados:

Foi pela misericórdia de Deus que foste brando para com eles. Se tivesses sido rude e inexorável, ter-se-iam afastado de ti. Desculpa-os, implora o perdão [de Deus] para eles e consulta-os; E quando tiverdes tomado uma resolução, confia em Deus. Deus ama os que confiam n’Ele. (Al-‘Imran 3:159)

Quando esse verso foi revelado, após a Batalha de Uhud, o Mensageiro de Deus disse: “De fato, nem Deus nem Seu Mensageiro precisam de consulta. Contudo, Deus fez dela um meio para a Misericórdia d’Ele. A quem quer que consulte, não será negado adquirir o que é correto, e qualquer um que não o fizer, desviar-se-á”. Entende-se facilmente com essa afirmação que devido ao fato de Deus ter imposto a consulta a Seu Mensageiro, que não precisava dela, outros governantes e administradores também devem praticá-la. Os governantes são lembrados de que não devem exercer a ditadura e devem se beneficiar das ideias de seus cidadãos; é dessa forma que cidadãos podem prestar assistência à administração do Estado.

Veja abaixo, alguns dos comentários feitos pelo Profeta sobre a consulta:

Aquele que consulta não terá motivo para se arrepender.[iii]

Aquele que consulta não será ferido.[iv]

Aquele que consulta está seguro.[v]

Não há comunidade que tenha feito uso da consulta e não tenha alcançado o resultado correto.[vi]

Com isso em mente, há consenso entre os eruditos islâmicos de que a consulta é um dos princípios básicos do Islam. Ela é uma das regras necessárias e deveria ser aplicada à vida. A consulta sempre foi entendida e praticada, porém algumas diferenças em sua aplicação podem ser vistas durante diferentes períodos e épocas e sob algumas condições e circunstâncias especiais.

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Claramente, a consulta não tem prioridade sobre os Comandos Divinos como fonte de legislação. Ela é, na verdade, possibilitada pelos Comandos Divinos e apesar de ser a base para algumas leis e princípios, a consulta é restrita e depende de fontes legislativas verdadeiras. Os assuntos para os quais há claros decretos divinos continuam fora da intervenção humana, as pessoas podem recorrer à consulta apenas para determinar o significado destes. Assuntos para os quais não há decretos estão completamente dentro dos limites da consulta.  Em tais assuntos, há obrigação de ater-se aos resultados e decisões feitas durante as consultas. O indivíduo não pode agir contrariamente às decisões tomadas e não pode continuar a expor ou defender visões ou opiniões contrárias. Se houver um erro ou equívoco na decisão tomada, mesmo que seja uma decisão da maioria, ele deve ser emendado ou corrigido por meio de nova consulta.

Apesar de os decretos divinos sobre a consulta serem, de certa forma, gerais, eles são restringidos por decretos sobre certos assuntos específicos e também pelos atos e obras do Mensageiro de Deus. Na verdade, os decretos no Islam, com algumas exceções (aquelas que expressam princípios universais e regras gerais), não se estendem muito, nem entram em detalhes sobre assuntos que podem ser considerados secundários. Questões para as quais não há comandos caem completamente nos limites da consulta e estão abertas à deliberação.

Aceitar o fato de que todo assunto para o qual o Islam claramente ordena um decreto está fora dos limites da consulta e, que os assuntos sem decreto claro estão dentro dos limites dela, faz com que a consulta seja restrita pela regra que segue e concorda com o Islam sob todas as condições e circunstâncias, além disso, ela deve ser regulada com referência no Alcorão e na Sunna, já que a consulta (shura) tenta realizar os objetivos descritos e definidos pela Palavra de Deus, o Alcorão.

Estes são alguns dos princípios que o Islam tem como objetivo: estabelecer a igualdade entre as pessoas; lutar contra ignorância e espalhar o conhecimento; intercalar e entrelaçar todos os temas e discussões em torno da identidade islâmica para que muçulmanos não contradigam sua própria essência; guiar as pessoas de um país a proteger seu lugar e posição no equilíbrio entre Estados; alcançar o equilíbrio ideal de justiça social entre indivíduos e comunidade; desenvolver e aumentar em todos os indivíduos e em toda a nação sentimentos de amor, respeito, altruísmo e esforço pelo outro; sacrificar seus próprios benefícios e aspirações materiais e espirituais em favor do outro; ordenar e organizar a política doméstica e internacional; seguir os assuntos internacionais com atenção; preparar, quando necessário, todos os recursos para lidar com o mundo como um todo, incluindo a preparação e modernização de equipes para combater batalhas psicológicas. Todas essas são preocupações humanas às quais os grandes governantes, administradores, pensadores talentosos e filósofos deram grande ênfase. Na orientação sobre legislação e representação, o Profeta do Islam sempre lutou por esses objetivos e fundamentou as vidas das pessoas, questões culturais, empreendimentos, ações e relações com os outros em todos esses princípios. Dessa forma, ele sempre foi capaz de unir os sentimentos, pensamentos, mentes, lógica, percepções e corações das pessoas.

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A consulta, em suas atribuições, promete alguns efeitos e também segue algumas regras que levam a resultados positivos. Nesse sentido, podemos mencionar: uma elevação no nível de ideias e intervenções na sociedade; relembrar a sociedade de sua própria importância ao levar em consideração suas opiniões em todos os novos eventos; produção de ideias alternativas; manutenção da consulta como princípio ativo em nome do futuro do Islam; fazer com que o Sawaad al-A’zam (a maioria entre os indivíduos mais elevados e mais capazes ou o conselho da comunidade muçulmana) se junte, de certa forma, à administração; garantir, pela supervisão pública da administração, que as pessoas se mantenham cientes da necessidade de questionar e solicitar prestação de contas dos administradores sempre que a situação o requerer; prevenir o comportamento irresponsável de governantes com a limitação de seu poder executivo.

Como dissemos anteriormente, é por causa da importância vital da consulta que Deus exalta os Companheiros do Profeta Muhammad como aqueles que resolvem seus problemas por consultas entre si (Ash-Shura 42:38). Além disso, o fato de que Deus, no final da Batalha de Uhud, no momento mais doloroso, comanda mais uma vez ao Profeta: consulta-os, [aconselha-te] (Al ‘Imran 3:159) com os Companheiros, que causaram resultado tão amargo e um momento tão doloroso, é excepcionalmente importante.

Ambos os versículos revelados sobre o princípio da consulta são extremamente flexíveis e sensíveis às necessidades de cada época. Eles têm um fôlego que supera todas as eras, de forma que não importa quanto o mundo mude e quanto os tempos se alterem. Mesmo que os humanos fossem capazes de construir cidades nos céus, eles não teriam necessidade de acrescentar nada a esses decretos (aos dois versículos). Na verdade, todas as outras regras e princípios do Islam estão abertos a flexibilidade e universalidade semelhante e sempre mantiveram – e continuarão a manter, no futuro – seu frescor, relevância e validade, apesar do passar do tempo.

Seria útil recapitular os pontos que formam a base da consulta:

1. A consulta é um direito tanto para governantes quanto para governados. Uma pessoa não tem preferência, prioridade ou superioridade sobre a outra para exercer esse direito. No versículo “os que resolvem seus problemas por consultas entre si” (Ash-Shura 42:38), o Alcorão indica que ambos os lados, governantes e governados, têm status igual. Já que todo trabalho relacionado aos muçulmanos concerne todos os indivíduos e toda a comunidade, os direitos de governante e governados são aceitos como iguais. Contudo, o direito pode variar de acordo com a época, lugar e condições e, portanto, a forma como a consulta será conduzida pode variar.

2. Como consequência do versículo “consulta-os” (Al-‘Imran 3:159), é incumbente ao governante ou administrador trazer os assuntos que necessitam de consulta à atenção das pessoas de bom julgamento, caso contrário, ele será responsabilizado. Os governados são responsáveis por expressarem suas opiniões quando perguntados, caso contrário serão igualmente responsabilizados. De fato, eles não terão cumprido com suas obrigações de cidadãos se não estiverem determinados a serem ouvidos quando suas opiniões estiverem sendo tomadas e ainda mais se negligenciarem dar voz às suas ideias e opiniões.

3. Executar a consulta para o prazer de Deus e benefício dos muçulmanos, sem permitir que a linha de pensamento do comitê consultivo seja afetada ou desviada por suborno, ameaças ou opressão, é essencial. O Mensageiro de Deus disse: “Aquele que é consultado é um homem de confiança; aquele que é consultado sobre um assunto deve expressar sua opinião como se tivesse que decidir sozinho”.

4. Talvez não haja sempre unanimidade (ijma’) na consulta. Contudo, quando não há concordância ou consenso geral nas opiniões e decisões entre os presentes, a decisão será tomada e as pessoas agirão de acordo com a opinião e convicção da maioria. De acordo com o Mensageiro de Deus, a maioria é considerada representante do todo:

A mão de Deus está com a comunidade.[vii]

Meu povo não se une em torno da transgressão.[viii]

Pedi a Deus que não permitisse que meu povo se unisse em transgressão, e Ele aceitou meu pedido.[ix]

Nesses hadices, somos lembrados que a visão da maioria é tão poderosa quanto à unanimidade e devemos aplicar e obedecer à decisão da maioria. Podemos relatar muitos exemplos disso na vida do Profeta, em resumo, podemos dizer que as consultas no início e no fim das batalhas de Badr e Uhud foram feitas dessa forma.

5. Quando a consulta é concluída por unanimidade ou pelo voto da maioria, desde que conduzida de acordo com as regras e com os princípios da consulta, não é mais permitido discordar ou se opor às decisões tomadas, nem propor ideias alternativas. Continuar a exprimir opiniões contrárias à decisão tomada com palavras como “[mas] eu sugeri uma visão diferente e mais confiável” leva apenas à derrota e não é nada menos que um pecado. O Mensageiro de Deus foi a Uhud seguindo a visão da maioria, apesar dela ser contrária a seu próprio julgamento (ijtihad). Após a batalha, ele não fez nenhum comentário ou observação a respeito da visão da maioria, sua causa ou resultados, mesmo que ela tenha sido errônea. Além do mais, o Alcorão indica que o zalla (lapso, descuido) dos muqarrabin (os mais próximos), cometido durante a preparação para Uhud, poderia ser questionado.[x]

6. A consulta concerne à solução de problemas existentes. Ela não se aplica a decisões conjeturais relacionadas a eventos hipotéticos. De qualquer forma, a vida islâmica já ocorre à luz dos decretos divinos. Com relação aos eventos que ocorrem fora dessa estrutura ou com relação a outros planos e projetos a serem completados, todo plano ou evento, levando em consideração suas particularidades, deve ser resolvido por si mesmo, em si mesmo e de acordo com sua maneira de ser.

7. O comitê consultivo reúne-se quando a necessidade aparece e continua a trabalhar até que os problemas sejam resolvidos e os planos e projetos finalizados. Como não há decreto divino informando que o comitê deveria se reunir regularmente, então, não há indicação de que ele deveria ser composto de assalariados ou por indivíduos pagos. A prática do Profeta e dos primeiros quatro califas constituem os parâmetros a esse respeito, não damos atenção às práticas dos períodos seguintes. De fato, a execução de consulta por pessoas assalariadas ou oficiais causam muitos problemas e complicações.

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Precisamos entrar na questão sobre quem são as pessoas a quem podemos consultar. Como é impossível reunir todas as pessoas de um país e conduzir a consulta dessa forma, então, ela deve ser feita por um grupo com número limitado de pessoas. Além disso, já que os problemas apresentados para deliberação requerem alto grau de conhecimento, experiência e expertise, o comitê consultivo deve ser composto por pessoas diferenciadas por suas qualidades. O comitê deve ser composto por pessoas de alto calibre, capazes de resolver diversos assuntos[xi]. Especialmente nos dias hoje, em que a vida tornou-se mais intricada e complicada, o mundo tornou-se globalizado e cada problema mostra-se geral e global, é vital que indivíduos competentes em ciências naturais, engenharia e tecnologia e considerados bons muçulmanos participem da consulta juntamente com homens de alto calibre, conhecedores da essência, realidade, espírito e ciência islâmica. A consulta pode ser feita com pessoas qualificadas de diferentes ciências, conhecimentos seculares e outros campos necessários, à medida que as decisões tomadas sejam supervisionadas por autoridades religiosas para que haja compatibilidade ou concordância entre o que é sugerido e o Islam. Dado que a consulta em si é responsabilidade desse comitê, a prescrição sobre como executá-la, de acordo com as diferentes épocas, circunstâncias e situações, também se enquadra no escopo dele. Durante toda história, é possível ver diferenças no desempenho e aplicação da consulta correspondente a diferentes épocas e circunstâncias específicas. Às vezes, em pequenos círculos ou pequenos grupos, outras vezes, em círculos amplos e grupos maiores; às vezes entre civis, outras, abrindo suas portas para as ciências e forças militares, o entendimento da consulta exibe mudanças e diferenças consideráveis. Contudo, isso não ocorre por ela ser um objeto cujas regras fazem-na mudar, mas por sua flexibilidade, universalidade e praticidade em todas as épocas e períodos.

De acordo com as diferentes circunstâncias e períodos, a conduta e a composição do comitê consultivo pode mudar, mas as qualificações e atributos das pessoas selecionadas, como conhecimento, justiça, educação social, experiência, sabedoria e sagacidade, nunca devem mudar. Justiça significa cumprir todas as obrigações compulsórias, evitando tudo que é proibido e não fazer algo que seja contrário aos valores humanos. Conhecimento inclui expertise religioso, administrativo, político e científico. O indivíduo não precisa ser especialista em todos os ramos da ciência, contudo, o comitê e a mente coletiva deveriam ser receptivos a todas as especialidades mencionadas acima. Quando boas maneiras, experiência e educação social estão na base dos tópicos, as opiniões e perspectivas de pessoas experientes são aceitas. Sabedoria é conhecimento, brandura, essência da vida profética e percepção do que está por trás do véu da realidade dos fenômenos naturais. Ela é vista como o conhecimento que permite às pessoas enxergar sob a luz da sagacidade e da intuição e entender o que está inacessível ao homem comum, dando a elas talentos, habilidades e inteligência para resolver problemas individuais, sociais ou coletivos. A sabedoria é reconhecida como um atributo de alto valor, mas apenas alguns poucos a têm.

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A importância que o Mensageiro de Deus deu à consulta, e o respeito dele pela opinião dos idosos, jovens e pessoas de diferentes classes sociais requer um tratamento completo e separado. Contudo, no escopo desse artigo, trataremos de apenas alguns exemplos. Ele sempre consultou e ouviu as opiniões dos outros, considerou-as com seriedade e tentou estabelecer todos os planos e projetos alternativos em bases firmes. Ele provou o quão importante considerava a consulta ao revelar sua opinião, às vezes, uma a uma a indivíduos e, outras vezes, reunindo todas as pessoas e baseando a decisão na opinião coletiva:

1. Na ocasião da difamação de sua esposa Aisha (‘ifq), o Mensageiro de Deus, consultou vários de seus Companheiros, a saber: ‘Ali, ‘Umar, Zaynab bint-i Jahsh e Barira. ‘Ali expressou a opinião de que o Mensageiro de Deus deveria ignorar essas preocupações e desconsiderar calúnias infundadas. ‘Umar, Zaynab, Barira e muitos outros que gozavam de alta estima afirmaram acreditar que Aisha era casta, exaltada e pura de tais calúnias. Apesar de a cadeia de narradores não ser considerada forte, há relatos da conversa entre ‘Umar e o Mensageiro de Deus quando este perguntou a opinião de ‘Umar sobre o evento. ‘Umar disse: “Um dia,enquanto lideravas a oração congregacional, removeste tuas sandálias e as puseste de lado. Quando te perguntamos a razão para isso, respondeste que algo impuro as manchara, o Arcanjo Gabriel informara-te sobre isso e dissera-te para removê-las. Agora, se algo tivesse acontecido e manchado o bom nome de tua esposa, não te informaria, Deus, sobre isso?” Apesar de a autenticidade dessa conversa não ser considerada alta entre alguns estudiosos de hadices, a lição com relação ao aconselhamento é muito importante.

2. Antes de partir para a Batalha de Badr, o Mensageiro de Deus consultou os muhajirun e ansar[xii]. Miqdad, em nome dos muhajirun, e Sa’d ibn Muadh, em nome dos ansar, expressaram opiniões semelhantes, transbordantes de fé, submissão e entusiasmo, que concordavam, confirmavam e apoiavam a opinião do Mensageiro de Deus, servindo, assim, para convencer suas tribos e a comunidade presente de que deveriam executar a decisão tomada. Como visto naquela ocasião, o Profeta sempre fez com que tais decisões vitais fossem adotadas pela comunidade como um todo e sempre seguiu em direção a uma meta com a opinião pública a seu lado.

3. Mais uma vez, em preparação para a Batalha de Badr, o Mensageiro de Deus aconselhou-se com Companheiros, como Khubab ibn Munzir, sobre o posicionamento e os campos de batalha para onde o exército do Islam deveria ser enviado e decidiu usar estratégias alinhadas às sugestões deles. Com isso, os muçulmanos derrotaram um exército três vezes maior que o seu e retornaram a Medina entoando canções de vitória.

4. Durante a Batalha da Trincheira (Ahzab), a disposição dele para atender e aquiescer à sugestão de Salman al-Fariside que muçulmanos deveriam cavar trincheiras em torno dos locais por onde os inimigos, provavelmente, tentariam se infiltrar em Medina é outro exemplo de como o Mensageiro de Deus dava importância à consulta.

5. Durante a negociação do Tratado de Paz de Hudaybiya, o Mensageiro de Deus consultou seus Companheiros novamente. Após ouvir as opiniões de todos os muçulmanos, ele consultou sua esposa, nossa mãe Umm Salama, sem negligenciar ou ignorar as opiniões dela, considerou as opiniões e inclinações pessoais dos Companheiros e, então, decidiu uma estratégia que transformou uma potencial derrota, um fracasso completo, em uma vitória clara, e retornou a Medina tendo salvo muitas vidas e almas.

Quando olhamos a vida do Mensageiro de Deus de perto, vemos que cada assunto, tópico ou problema para os quais a Revelação Divina não foi enviada, era conduzido por meio de consultas, apresentados e adotados pela consciência coletiva, e a decisão tomada era imediatamente posta em prática e executada. Assim, os conselhos consultivos que vemos em vários Estados islâmicos durante toda a história nada mais são do que a mera continuação da primeira consulta e do primeiro conselho vistos no modelo do Profeta.

 

 



[i] Qurtubi, al-Jami’u Li-ahkam-il Qur’an, 4/251

[ii] Alguns dos Companheiros mais jovens que não tiveram a chance de participar da Batalha de Badr queriam lutar no campo de batalha. Cegos por sua vontade, não conseguiram apreciar o julgamento sábio do Profeta para resistir ao inimigo com a defesa da cidade de Medina. Isso é considerado um zalla, um lapso.

[iii] Qurtubi, al-Jami’u Li-ahkam-il Qur’an, 4/251.

[iv]al-Jami’u Li-ahkam-il Qur’an.

[v] Abu Dawud, Adab, 114; Tirmidhi, Zuhd, 39; Adab, 57; Ibn-i Maja, Adab, 37.

[vi] Qurtubi, al-Jami’u Li-ahkam-il Qur’an, 16/36.

[vii] Tirmidhi, Fitan, 7.

[viii] Ibn Maja, Fitan, 8.

[ix]Musnad, 6/396.

[x] Ver nota n° 7.

[xi] Este conselho é chamado deahl al hal wal ‘aqd, que significa “aqueles que podem solucionar problemas”.

[xii] Os muhajirun foram os primeiros muçulmanos a emigrarem de Meca para Medina. Os ansar eram habitantes de Madina que ajudaram aos imigrantes muçulmanos.